Destaques 

TANGERINOS: RASTRO DE BOIS, CAMINHOS DA SAUDADE

 

“Tangerinos: rastro de bois, caminho da saudade” não é uma exposição fotográfica e documental, ao menos não como as outras. É antes uma poesia. Uma poesia sobre gente “miúda” daquele Brasil profundo, objeto de relato pela literatura nacional, mas fugidia das pesquisas mais convencionais. Os tangerinos aqui apresentados não são um objeto de pesquisa de quem assina a autoria da exposição, Miguel Teles, mas coadjutores de uma pesquisa muito promissora que transita pelos caminhos da História Social tentando reconstituir as experiências daqueles que a duras léguas eram os responsáveis pelo tanger do gado sertões à fora, ou melhor, sertões à dentro.

É preciso perspicácia no caminhar pelos territórios mais convencionais da pesquisa científica para saber capturar as trajetórias de vida, trabalho e existência dos tangerinos e transformar esses sujeitos em tema de pesquisa. Reconhecer antes a importância desses sujeitos em seu protagonismo na economia e sociedade curraleira, para depois restituir-lhes a historicidade é um exercício que requer um conhecimento refinado e sensível sobre o vocabulário dos tangerinos, cheios de aboios e agidô.

A mostra é uma oportunidade de acesso à memória dos despossuídos, daqueles que não tendo o privilégio dos lombos do cavalo ou mula, tangiam os bois a pé, por vezes de um estado a outro. Itinerâncias de “Josés” e “Manés” que nos falam sobre as terras do agreste e sertões para além da beira-mar e igualmente nos conduzem às histórias desconhecidas do público em geral e mesmo do mais afinco intelectual.

Uma mostra que nos “mostra” sobre as itinerâncias das memórias, como se constituem, se reformulam, se regeneram e sobrevivem contrariando a força da memória nacional que invisibiliza e relega ao esquecimento os grupos subalternizados. As itinerâncias dos tangerinos nos conduzem a um hiper-realismo muito distante dos metaversos, onde as existências podem ser forjadas em conformidades com as conveniências e desejos de quem neles emergem. A realidade dos tangerinos não tem elementos de virtualidade, suas experiências são de dureza extrema e contam sobre trajetórias de sujeitos de um Brasil não muito distante de nós.

Limpando as alpercatas essas memórias adentram aos espaços do Museu Casa do Sertão, já consagrado às experiências sertanejas, para afirmar que as culturas iletradas, representativas das memórias esquecidas, silenciadas, reprimidas, são também resistentes, persistentes e insurgem mesmo à revelia das forças produtoras da memória nacional. Quando alertei inicialmente sobre não se tratar de uma exposição como as outras, estava falando sobre as figuras dos vaqueiros, dos fábricas e dos tangerinos que habitam e constituem visceralmente as culturas dos sertões.

A presente exposição é menos sobre os bois que circulavam pelos sertões e, como força motriz movimentava a economia agropastoril com projeção no recôncavo e litoral. É sobre outra força motriz, a da gente que ladeava as boiadas nos translados, os tangerinos. A presente exposição não é sobre gado, é sobre aquele sertanejo que é “antes de tudo, um forte” em suas fragilidades, medos, devaneios, enfim, em sua valentia e humanidade.

  Edicarla dos Santos Marques

Mestre em História, professora assistente do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

 

EXPOSIÇÃO

                                           AQUI ONDE ESTOU por ZéCarlos Sampaio                                               

                                                                                     

A presente mostra busca unir sensibilidade e subjetividade artística para elencar poéticas visuais da realidade sociocultural sertaneja, em especial, alguns aspectos de seu cotidiano, que se tornam evidências de potentes relatos construídos com feições realistas, figurativas e perpassam saberes estéticos, históricos, geográficos e sobretudo de crítica social.

As inspirações e óticas deste cronista visual de seu tempo, emergem e circundam sertões, onde ele enfatiza que “o foco são as pessoas que são felizes com a simplicidade da vida do seu habitat natural, representadas com produções imagéticas feitas com barro, tinta acrílica e aquarelas” tons terrosos em que se afirmam entre outros aspectos, os estereótipos, sua denúncia e superação.

A proposta de ZéCarlos Sampaio é trazer ao Museu Casa do Sertão uma montagem leve, com poucos elementos expositivos e que figure como contraponto estético, materializado tanto na paleta de cores vibrantes, que delineiam as mulheres, homens e crianças “sem rostos” (da Série Cotidiano); bem como da produção “Nordestino que Somos” que reúne em doze composições de pequeno porte, um mosaico formado apenas por rostos, com traços, cores e personagens que remetem ao mundo da ilustração, dos HQ’s (história em quadrinhos) e ou mesmo do cordel, sem dúvidas, um grande atrativo ao público jovem.

A mostra externaliza um universo particular e sensível as agruras sofridas pelo povo do Nordeste, e assim sendo, nota-se que o artista toma posição e esboça seu solidário e singelo manifesto às relações com os indivíduos e o meio. Melhor exemplo são as representações evocadas com a instalação “Prateleiras da Venda de Seu Zé” uma montagem que versa sobre temáticas tão em voga hoje dia como o valor das coisas, afetos e pertencimentos, ali operados, pela articulação entre acervos constituídos de reaproveitamento e potenciais memórias que podem emergir do contato visual com um cenário que remete a banal e peculiar atmosfera das vendas do interior do país, ressaltando nesta construção, a importância da circulação de “informações de vida” contidas nesta inusitada instalação artística.

  Cristiano Silva Cardoso

   Museólogo UEFS


       Entre Sons e Formas Percussivas: A Inventividade de Zé das Congas

Diversificar sentidos, esta é a proposta da exposição no Museu Casa do Sertão que reúne trabalhos do multiartista Zé das Congas, personalidade local reconhecida pela grande generosidade criativa. A mostra que passeia por formas criadas a partir da técnica de entalhe em madeira, exibe recentes produções em homenagem a heroína Maria Quitéria, a Sagrada Família e o colorido de imagens que rementem a paisagens bucólicas da cidade. É possível ainda, visualizar alguns dos inúmeros instrumentos musicais criados pelo mesmo e que reverberam sonoridade nos diferentes espaços de Feira de Santana. As peças que podem ser manipuladas pelo público visitante, marcam o papel pedagógico da ação que é compartilhar saberes e sensações.

Parte importante desta ação consiste em ampliar a consciência ambiental pela retirada objetos considerados inservíveis do ambiente e direcioná-los por meio da reinvenção a novas formas. De onde antes só se via lixo, renascem inúmeros aparelhos musicais como o Djember de Pressão, oriundo da panela de pressão, unida a latas, couro de bode e cordas que recebem afinação. Outro exemplo é o Taro-Cano um híbrido que une dois instrumentos musicais para entregar uma aguda sonoridade, obtida da reutilização de radiografias e cano de PVC. Um destaque especial da mostra é a criação dos Tambores de Crioula Retorcidos, muito utilizados nas práticas culturais maranhenses e pernambucanas que ostentam estrutura basilar do tronco de coqueiro, esculpidos em entalhe circular num formato de parafuso e a Zabumba produzida para o trio de forró “Raízes do Nordeste”.

Em essência, a caminhada deste feirense se dá através da união entre valores, toques e ritmos, revisitando práticas culturais ancestrais com o propósito de promover virtuosas conexões, inspiradas na sabedoria africana de autoconfiança, pertença e no entrelace de conhecimentos sobre: o passado (de violência, lutas e resistências) o presente (de agruras, afirmação e dignidade) e o futuro (de estima, oportunidades e reparação). O projeto social sediado no famoso bairro da Rua Nova, tem então sua missão definida entre os jovens, ou seja: conduzi-los a atravessar com beleza e arte, os abismos e incertezas cotidianas. É assim que a transformação proporcionada pelo protagonismo de Zé das Congas não se restringe aos materiais e instrumentos musicais.

Portanto, reafirmamos aqui o convite a prestigiar a mostra deste talento que inspira, através da levada, dos timbres e acordes, produzidos pelo impacto, raspagem, e agitação de aparelhos que veiculam além de sons, a esperança no futuro da juventude da Rua Nova.

Cristiano Silva Cardoso


BARRO, ENCONTROS E MEMÓRIAS NA ARTE DE CRISPINA DOS SANTOS

 

A cerâmica, importante expressão cultural e popular brasileira é destaque no Museu Casa do Sertão da UEFS, por meio de uma justa homenagem ao fazer cultural e artístico da artesã feirense Crispina dos Santos. A exposição é um convite a prestigiar a memória da ceramista que marcou a cena cultural baiana, com a assinatura de suas peças no imaginário material das artes em barro cru.

 Em destaque, uma instigante Expografia que ocupa um novo espaço do museu para delinear um sertão imagético elaborado pelas mãos de uma genuína representante da modelagem em argila de Feira de Santana. São expostas 67 peças, recentemente restauradas em Salvador pelo Studio Argolo, verdadeiras relíquias que expressam a cerâmica brasileira “de um tempo e de um lugar”.

Das criações mais emblemáticas está a construção de personagens inspirados em revistas e recortes de jornais, feitas no mês de setembro e só comercializados em dezembro. Constam ainda baianas, animais e figuras humanas, todas dotadas de peculiar estilística e colorido especial, fruto da técnica autoral de modelar a mão, secar ao sol, usar tintas em pó diluídas em agua, aplique de penas, douramentos, tecidos, algodão e taliscas.

A atuação de Crispina dos Santos pode ser, entre outros aspectos, referendada como uma arte implicada em leituras de mundo, oriundas da sua história de vida e traduzida nas composições figurativas que sempre a acompanharam, denotando uma escrita cultural material que transcende o espectro artesanal e sua nobre função de embelezar. As peças em questão, exaltam peculiaridades na representação do imaginário coletivo, e dão vivacidade a crônicas visuais, alçadas de um vasto repertório temático, oriundas do chamado patrimônio-acontecimento, ou seja, o entrecuzar de narrativas domésticas que se tornam coletivas pela partilha imagética e de vozes, que emergem do cotidiano e reivindicam, nas dimensões poéticas, políticas e pedagógicas, o reconhecimento, não só de reminiscências, mas sobretudo, de sujeitos sociais e o direito à valorização de suas memórias.

O painel reflexivo sobre a obra de Crispina dos Santos no Museu Casa do Sertão é composto ainda, por duas instalações que complementam a mostra, propondo além de um encontro de gerações artísticas, utópicas subversões, tanto de ordem pictórica quanto cronológica.

A primeira, tem por base o emblemático ensaio fotográfico “O presépio sertanejo de Crispina dos Santos” realizado pelo artista e arquiteto Juraci Dórea, originalmente publicado na Légua & meia Revista de Literatura e Diversidade Cultural, UEFS (v3, n 2 2004). Em preto e branco, o registro histórico se coloca como um contraponto ao característico colorido das peças que ocupam a sala, e instigam potenciais debates sobre obra de arte, originalidade e sua reprodutibilidade.

A segunda instalação, enfoca a perspectiva da jovem Emilly Sisnando, artista visual do município de Elísio Medrado no Vale do Jiquiriçá, que inspirada em relatos pessoais, traz numa leitura lúdica, a figura infantil de Crispina e sua relação com o barro, em obras cujo ponto central são imagens compostas por borra de café e o característico “azul anil” tão explorado pela artesã. As criações fazem parte de seu projeto de pesquisa artística “Recorte do Nordeste” e foram expostas durante a pandemia nas ruas do centro de Feira de Santana, no âmbito do Projeto Favela é Isso Aí, apoiado pela Belgo Bekaert.

Cristiano Silva Cardoso